Ana Filipa Alves
Entrevista

A Pexita Musa da Tijuca

O samba corre-lhe nas veias desde pequena. Pexita de gema, Ana Alves alcançou em 2022 o seu maior sonho no Carnaval do Rio de Janeiro: É Musa da Unidos da Tijuca. Em 2023 foi agraciada com a Medalha de Mérito Cultural da Câmara de Sesimbra.

Cresceu dentro do samba e com o samba dentro. Filha de fundadores do Bota, a escola de samba mais antiga do país, Ana Filipa Soromenho Alves nasceu a 5 de maio de 1983 e aos 14 anos já era passista. Em 2011 partiu para o Brasil à procura de viver mais o Carnaval. «Queria ir mais além do que viver o Carnaval de Sesimbra, em que eu estava envolvida desde pequena. Mas tornou-se pequeno para mim», confessa.

«Viver o Carnaval do Rio sempre foi uma realidade longínqua, mas tornou-se próxima com a minha doideira de querer ir», conta, descrevendo a aventura que teve a dois, com o ex-marido. «Vendemos tudo o que tínhamos, casa, carros. E hoje não me arrependo de nada. Cheguei bem mais longe do que esperava», realça.

Começou por trabalhar numa clínica de oftalmologia, mas «foi uma luta» para arranjar o visto. Esteve prestes a ser denunciada à imigração e acabou por ser demitida após nove meses. «Foi difícil. Não é assim tão simples como as pessoas dizem. Mas foi uma experiência que trouxe algum calo para a vida», refere, lembrando que depois esteve um mês a trabalhar nos Unidos da Tijuca. «Foi uma experiência boa, porque eu já fazia os meus fatos aqui, então para mim foi fácil. Aprendi muito e hoje faço as minhas fantasias com uma perna às costas», admite.

Faz tudo

A Musa do GRES Unidos da Tijuca é uma verdadeira faz tudo do Carnaval: dança, toca, faz as suas roupas e até canta. Recentemente foi convidada para cantar em português de Portugal o início de um samba candidato a música oficial da Unidos da Tijuca em 2024. “Conto de fados” é o nome do enredo que vai sair na avenida no próximo ano. O samba que contou com a participação de Ana Alves acabou por ser o vencedor.

Responsabilidades acrescidas

Chegar a Musa não foi fácil. «Lutei muito. Foram 10 anos a ser uma passista assídua, frequente. Não faltava. Sempre bem vestida, bem arranjada, bem maquilhada, um cabelo bonito, um salto, uma roupa. Tudo isso conta. Hoje sei que o meu mérito foi esse», relata.

«Foi uma luta muito árdua para mim. Eu era convocada para todos os shows porque tinha as melhores fantasias. Era a pessoa que mais estava presente na quadra. Comecei a rodar o meu pandeiro novamente, coisa que já fazia aqui em Sesimbra, e isso ajudou muito a impulsionar o meu lançamento enquanto musa e depois o convite veio», relata, esclarecendo que nem sempre isso acontece.

Ana, que tem a alcunha de ”preta” desde o nascimento, considera que já chegou ao mais alto nível. «Não tenho ambição de mais nada. Daqui em diante é viver, é curtir. Se deixar de ser Musa posso experimentar outras coisas, como ir num carro na Tijuca, ir numa comissão de frente ou na bateria, que eu gosto de tocar e cantar», adianta, frisando ter várias vertentes ainda por explorar. «O topo mais além eu já atingi», assume.

Ser Musa de uma escola de samba do Rio de Janeiro não é apenas um passatempo, é uma responsabilidade. «Quando vou para um show da Tijuca, para um ensaio, para um evento de Carnaval, eu sou Musa da Tijuca, e isso impede-me de ter determinados comportamentos», frisa, recordando que os meios de comunicação social brasileiros não perdoam deslizes.

Com tanto por fazer, Ana arranja sempre tempo. Além de Musa da Unidos da Tijuca, no Carnaval de 2023 foi destaque da Vigário-Geral, como Xuxa, e foi Rainha da Banda da Barra. «O Carnaval para mim é um negócio, não é só mais uma diversão. Sou remunerada em muita coisa que faço e tiro muitos benefícios da minha vida carnavalesca», nota.

A 4 de maio de 2023 recebeu a Medalha de Mérito Municipal – Mérito Cultural Grau Bronze da Câmara Municipal de Sesimbra. A distinção foi entregue ao avô, em sua representação, mas no verão teve a oportunidade de agradecer pessoalmente durante o Mega Samba. «É a prova de que o samba valeu a pena na minha vida», observa.

«A medalha foi um mérito para mim e mais um balão de oxigénio. Foi o meu expoente máximo ter o reconhecimento da minha terra», realça, sentada no muro junto à Fortaleza de Santiago.

As recordações

Escolheu a zona das sentinas para conversar por ser um lugar especial. «Foi aqui que cresci. Esta foi a rampa que mais desci na minha vida toda», diz, bastante emocionada, a sesimbrense, que em 2013 completou 40 anos. Viveu sempre na Rua Eça de Queirós. «Vinha com o meu pai por aqui e o meu tio tinha um barco na rampa», lembra.

A nostalgia invade-lhe sempre que volta. «É tão bom chegar a casa, é tão bom ver a família, ver os amigos», realça, confessando que se lembra com frequência de algumas rotinas. «Lembro-me muito do meu tio chegar a casa com o peixe vivo no balde. Lá tenho muita dificuldade em comer peixe», nota, enquanto as lágrimas lhe escorrem pela cara. «É uma coisa que eu sinto muita falta», admite, optando por comer peixe a todas as refeições quando passa férias em Sesimbra.

Fato de homenagem a Sesimbra

A Musa da Unidos da Tijuca desfilou em 2023 como Pinauna, um ouriço preto dos mares da Bahia que vive rodeado de conchas e búzios, próximo de rochas e recifes. A sua fantasia foi ornamentada com conchas de Sesimbra, que com a ajuda de amigos atravessaram o Oceano Atlântico para desfilar na Sapucaí, homenageando assim a Baía de Sesimbra, a sua terra natal. O fato com que desfilou no Carnaval de Verão de Sesimbra de 2023 foi entretanto doado à Câmara Municipal de Sesimbra.

A vida no Brasil

No Brasil, o dia-a-dia de Ana é «muito simples». Trabalha como técnica de saúde bucal numa clínica, onde foi promovida a subgerente, das 8 às 16 horas e ao sábado das 8 às 13. «Tenho um horário maravilhoso», revela. Só assim consegue ter tempo para tudo o resto.

Quando sai do trabalho, vai ao ginásio, do qual não pode abdicar. «Ir ao ginásio fazer fortalecimento é muito real para mim e inevitável. Não se trata mais só de vaidade, de corpo, de preocupação em estar bem fisicamente. É a saúde», nota, lembrando que também não pode ganhar peso.

Não pode ser só gastar

«Fazer as minhas roupas é uma vantagem financeira gigante, porque eles não cobram barato», conta, dizendo que mandar fazer um fato para o desfile oficial pode custar 2000 euros. «Eu faço tudo. Para a fantasia do desfile da Tijuca tenho de seguir um desenho, mas quando faço shows as fantasias são minhas. Sou eu que as idealizo», refere. Uma vez por ano faz uma ou outra fantasia para ganhar mais algum dinheiro. «Não pode ser só gastar. Desde que virei Musa só gasto», desabafa.

Antes de partir para o Brasil era assistente dentária e lá conseguiu evoluir também nessa carreira. «A minha profissão é mais bem paga lá. Aqui só há assistente dentária e lá já sou técnica», conta. Para conseguir ter melhores rendimentos, começou a fazer fatos e tem também uma empresa de franjas. «Tenho uns negócios paralelos, que me trazem uma renda muito superior à que conseguiria tirar em Portugal», realça, frisando que «o Rio é cheio de oportunidades».

A viver há 12 anos no Brasil, Ana Alves fala português de Portugal e português do Brasil. «Lá tenho de falar brasileiro, não tenho hipótese. Eles não entendem», comenta, frisando que quando chega a Sesimbra vem sempre com algumas expressões brasileiras. «Mas ainda falo muito pexito. Eu gosto, é a minha raiz», adianta.

Percurso no samba

Ana Filipa Alves entrou para a Unidos da Tijuca em 2011, integrando a ala de passistas Encantos do Pavão. Através da sua dedicação, foi Rainha de Blocos carnavalescos, Miss Simpatia e Musa na Alegria da Zona Sul. Foi premiada em 2019 como Passista Revelação Feminino por Passista Samba no Pé e em 2022 virou Musa da Tijuca. Em 2023 ficou em 5.º lugar no concurso para Melhor Musa do Carnaval do Grupo Especial do Rio de Janeiro. Em Portugal sempre pertenceu ao Bota, onde foi ‘Rainha do Milénio’ em 2000 e ‘Rainha de Bateria’ em 2009, 2010 e 2011. Foi no Bota que criou a primeira ala de passistas mirim da Europa. «Serei sempre Bota. Eu sou do Carnaval, mas a minha escola raiz é o Bota. Sempre será», frisa.